segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Argentina de Perón versus Milei, por Luiz Philippe Orleans e Bragança

 

Milei vs Perón

No último domingo, 13 de agosto, a Argentina votou nas eleições primárias, que vão decidir, em 22 de outubro, o novo presidente. Com mais de 30% dos votos, Javier Milei, do partido de direita “La Libertad Avanza”, está à frente. Nas eleições primárias, os argentinos elegem pré-candidatos, portanto, o povo participa diretamente da escolha prévia dos candidatos para o pleito maior.

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Milei é adepto da Escola Austríaca e se denomina "filosoficamente anarcocapitalista", contra intervenções de Estado na vida dos cidadãos, e "minarquista”, isto é, adepto do estado mínimo. É abertamente católico, contra o aborto, pautas globais e de minorias. Com postura fortemente idealista, seu lema de campanha é "não vim aqui para liderar cordeiros, mas para despertar leões". Milei também denunciou a "casta política", que disse ser composta de "políticos inúteis e parasitas”.

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O perfil de Milei tem tudo para desagradar a mídia internacional. Mas para qualquer observador da Argentina, o país precisa de um reformador urgentemente para desmontar o modelo nacional-socialista criado por Perón que dura quase 100 anos e gera instabilidade e pobreza recorrentemente. Escolher o estilo do reformador, a essa altura do campeonato, parece ser um exercício fútil e soberbo.

O problema do peronismo que Milei terá de combater se confunde com a história da Argentina e traça semelhanças com os mesmos desafios que vivemos por aqui. Entenda.

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Perón, o Pai do Problema - O panorama político da Argentina tem uma divisão clara a partir do Peronismo, desde 4 de junho de 1943, quando um golpe militar deu início ao modelo nacional-socialista. Como parte do novo governo, o então militar Juan Domingo Perón assumiu a Secretaria do Trabalho e Provisão, adotou um discurso anticapitalista e de justiça social e utilizou seu cargo para se aproximar das classes de trabalhadores e dos movimentos sindicais da Argentina. Em seguida implementou uma política de massas, ao promover diversos benefícios trabalhistas, como a ampliação do regime de aposentadorias, a criação do salário-mínimo e do 13º salário. Tais ações garantiram sua ascensão política, mas detonaram permanentemente as contas públicas.

Paralelamente, Perón abria as portas para os nazistas alemães que fugiram para a Argentina no pós-guerra. Deu abrigo e salvo conduto a torturadores e criminosos de guerra. Alguns foram descobertos e extraditados para serem julgados em tribunais internacionais, mas a maioria viveu e morreu impune na Argentina. 

Em 1946 Perón concorreu à presidência e venceu com quase 53% dos votos. Eleito para um segundo mandato, Perón já encontrou problemas econômicos criados por ele mesmo que culminaram em mais instabilidade política e sua deposição por golpe militar em 1955. Perón voltou ao poder em 1973 mas faleceu no ano seguinte, deixando Isabelita, sua esposa, em seu lugar. Governante fraca, foi deposta dois anos depois por outro golpe militar.

Ditadura Militar - Nos seis anos seguintes, a Argentina teve sete presidentes da junta militar. A alta instabilidade social e econômica que afetava o país foi agravada com a perseguição politica que registrou 30 mil mortos.  E como se não bastasse isso, para combater o comunismo os militares optaram por, pasmem, mais peronismo.

Apesar de diferentes regimes registrando tragédias econômicas, sociais e políticas sucessivas, ninguém ousou tocar no modelo peronista. Este sobreviveu, e com ele o ciclo de destruição se repetiria. As políticas peronistas, muito semelhantes às do Estado Novo de Getúlio Vargas aqui do Brasil, primam por seu caráter assistencialista de altos gastos desvinculados da arrecadação, o que torna o modelo eternamente insustentável.

Ao passo que as políticas peronistas perduraram, elas se institucionalizaram, tornando-se um modelo de estado social permanente.  Ao final do regime militar e crise generalizada, a Argentina nunca mais alcançou os patamares de desenvolvimento da era pré-peronista. O termo “rico como argentino” começou a cair em desuso à medida que o peronismo se enraizava e empobrecia um dos países mais ricos do mundo no pós-guerra.

Alfonsín  e o Austral - Em 1983, venceu as eleições para a presidência da Argentina o advogado de esquerda Raúl Alfonsín, do partido UCR, ligado à Internacional Socialista. Embora rival durante décadas do partido peronista, Alfonsin e seu partido adotaram medidas semelhantes. O marco econômico do governo Alfonsín foi o plano Austral.  Pressionado pela dívida externa insustentável, desemprego de quase 10% e a inflação de quase 209%, a solução foi recorrer ao FMI, que exigiu cortes nos gastos públicos.

Em março de 1985, quando a dívida externa explodiu, o FMI negou créditos adicionais e a solução encontrada foi um plano emergencial, o Plano Austral.  Esse plano congelava preços e salários, interrompia a impressão de dinheiro, organizava cortes de gastos e estabelecia uma nova moeda, o Austral. O plano resfriou a inflação por alguns meses, mas logo voltou com força total. A CGT, central sindical argentina, se opôs ao congelamento salarial, e a comunidade empresarial, ao congelamento de preços. Alfonsín até cogitou medidas liberais como a privatização de algumas estatais e a desregulamentação da economia, mas essas propostas foram objeto de oposição dentro de seu próprio partido.

Encurralado pelo sistema, Alfonsín lançou o "plano da Primavera", que tinha o objetivo de  manter a economia estável até as eleições, congelando preços e salários e reduzindo o déficit federal. Sem apoio parlamentar ou popular, esse plano teve uma recepção ainda pior do que o plano Austral. Consequentemente, o Banco Mundial e o FMI se recusaram a conceder mais créditos à Argentina. Os grandes exportadores se recusaram a vender dólares para o Banco Central, o que esgotou suas reservas cambiais rapidamente. O Austral foi desvalorizado e a inflação alta se transformou em hiperinflação. Nesse ponto a hiperinflação, altas dívidas internas e externas, poucas reservas e queda na renda e poupança se tornavam o novo normal.

A eleição presidencial de 1989 ocorreu durante essa crise, e o Justicialista - leia-se partido peronista - Carlos Menem,  tornou-se o novo presidente. A crise estava em tal descontrole que Alfonsín transferiu o poder para Menem em 8 de julho, cinco meses antes do previsto.

Menem e o Dólar - Se a inflação estava descontrolada na Argentina a ponto de Alfonsín passar o bastão com cinco meses de antecedência, Carlos Menem, resolveu solucionar o problema econômico com uma fórmula ainda não testada: a dolarização da economia. Economistas da época avaliavam que essa dolarização apenas institucionalizou uma prática que já estava em curso desde os anos 80, com a alta crônica da inflação na Argentina e a perda total de confiança na moeda nacional. O dólar foi o refúgio de todos argentinos.

Planos heterodoxos encantam, mas não se sustentam. Menem foi mais um que não fez a lição de casa e não reformou o peronismo, apenas privatizou algumas empresas com o fim de gerar caixa para equilibrar contas temporariamente. Ao final do século 20 a crise econômica e instabilidade política estavam de volta e ninguém queria se apresentar para segurar a faca afiada em queda livre. Após Menem, cinco presidentes assumiram o poder e logo renunciaram; Fernando de La Rua, Ramon Puerta, Adolfo Rodriguez, Eduardo Camaño e Eduardo Duhalde, em menos de três anos! 

Corrupção e os Kirchner - Eis que Néstor Kirchner assume a presidência em maio de 2003, também pelo partido Justicialista (peronista), com promessas de reformas profundas no campo político e administrativo. Junto com sua mulher e sucessora, Cristina, pouco fez para reformar o país e muito se esforçou para aumentar seu patrimônio pessoal. Depois da morte de Néstor, Cristina foi condenada em 2022 a seis anos de prisão por corrupção em empresas estatais. 

Em velho estilo peronista, e similar ao modelo da esquerda brasileira, Néstor acreditava em ativar a economia via gastos do governo, contratando obras. No entanto, não houve diminuição significativa no número de pessoas na pobreza, que naquela época atingia quase 25% da população. 

Escândalos de corrupção o fizeram desistir de um segundo mandato em 2007 para apoiar sua mulher Cristina Kirchner, eleita pelo mesmo partido. Ela foi presidente por dois mandatos. Como os Kirchner conseguiram governar? Contendo a crise.  Em vez de encarar os problemas econômicos estruturais do peronismo, marido e mulher em seus governos tiveram sucesso em renegociar dívidas e “empurrar com a barriga” as contas para o futuro. Hoje esse futuro chegou na forma de hiperinflação. 

A crise mundial de 2008-2009 expôs as fragilidades da Argentina que se afundou mais uma vez no desemprego, na inflação e incapacidade de resposta do governo de Cristina. Desgastado, o peronismo foi finalmente derrotado nas eleições pelo candidato da direita, Maurício Macri. Parecia que agora o peronismo havia encontrado seu algoz. Só que não.

Macri, o Meigo - Em dezembro de 2015, o engenheiro, empresário e executivo Maurício Macri é eleito e se depara com a situação de crise econômica típica. As contas do governo estavam no vermelho e havia crise de desconfiança do público e dos investidores. As reservas federais estavam baixas, a inflação chegava a 30% ao ano, com grande déficit orçamentário. O governo Macri começou por estabilizar o peso, permitindo aos argentinos comprar moedas estrangeiras com mais facilidade e pouco controle. Cotas de exportação e tarifas sobre soja, milho e trigo foram reduzidas consideravelmente. Macri adotou medidas de austeridade e corte de gastos, mas foram tímidas e limitadas. A estratégia de reformar aos poucos não foi rápida nem profunda o bastante para gerar resultados convincentes e conter a oposição política.  Consequentemente, a inflação, o desemprego e a dependência do assistencialismo continuaram altos.

Em 2019, em meio a um quadro econômico de recessão, Macri tentou a reeleição, mesmo com popularidade em baixa. Suas propostas de austeridade para balancear o orçamento acabaram não se concretizando, e o PIB retraiu em três dos quatro anos em que esteve no poder. O peso se desvalorizou, a inflação bateu recorde chegando a 56% ao ano, os índices de desemprego subiram de 8% para 10% e a porcentagem de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza subiu de 29% para 35%. Incapaz de reformar o peronismo, Macri acabou derrotado pelo candidato socialista Alberto Fernández.

Fernandez, o Breve - O atual presidente da Argentina é reflexo de todos os problemas históricos do país: peronismo. Ele tem ligação histórica com sua vice, Cristina Kirchner; com Néstor Kirchner, de quem foi chefe de gabinete; e com Carlos Menem, de cujo governo participou.

Ao tomar posse, encontrou uma grave crise econômica, com taxa de pobreza perto de 40%, recessão de 3,1% em 2019 e  inflação de 55%. Alberto Fernández então anunciou uma série de medidas dobrando a aposta no peronismo. O resultado? O dobro do desastre que o peronismo sempre gerou. A alta inflação, que assolava a Argentina, não parou de crescer: o último registro do Indec marcou uma inflação de 115,6% em junho de 2023, mais que o dobro de quando ele assumira.

Como se não bastasse a crise fiscal e monetária, as medidas socialistas de seu governo afugentou os empresários mais aguerridos gerando um aumento na pobreza brutal recorde; atingindo mais da metade da população. Atormentado pela crise que ele mesmo piorara e por sua baixa popularidade, Fernandez tomou a única medida sensata de todo seu governo: não tentar se reeleger nas próximas eleições presidenciais.

Agora vai? - O peronismo é socialismo, sindicalismo, assistencialismo, corrupção, instabilidade, inflação, crise, desemprego e pobreza resumidos em uma só sigla.  Ao todo lá se foi quase um século de calotes nos credores, de perdas de confiança na moeda, de planos de emergência falidos, de alta inflação, de alta instabilidade política e de aumento na pobreza.

E é em mais um cenário de desastre peronista que aparece Milei.  Se o peronismo reúne tudo o que há de errado em uma só sigla, a tragédia maior do modelo é sufocar quem surge para reformá-lo. Essa trajetória longa e desastrosa da Argentina ainda espera um desfecho que só pode acontecer por meio de reformas do Estado Peronista Argentino.

Mas se Milei vencer, terá maioria para reformar? O povo quer o que Milei representa ou está desesperado, disposto a aceitar qualquer alternativa?  A saída é dolarizar de novo? E o que acontece se ele acabar com o banco central?  Essas são questões para serem respondidas em um próximo artigo.

Leia mais em: Gazeta do Povo

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