Alexandre de Moraes, durante o julgamento da inelegibilidade de Jair Bolsonaro e de Walter Braga Netto
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
As suposições oficiais da polícia e do ministro Alexandre de Moraes sobre as alegadas tentativas, ou intenções, ou conversas, ou planos, ou desejos, ou pensamentos etc. etc. de um golpe de Estado que seria dado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro já são um dos grandes clássicos do almanaque mundial das investigações criminais. As investigações provaram um fato indiscutível. Nunca houve a mais remota possiblidade de que ele, ou qualquer outro ser vivo, tenha organizado o que se entende como um “golpe de Estado” — de acordo com o dicionário da língua portuguesa e a lógica mais elementar. Ficou provado, aliás, o exato contrário: o suspeito disse que não queria nem iria fazer nada de parecido. Mas os acusadores, e quase toda a mídia, chegaram à conclusão oposta: a culpa é dele. Se não deu o golpe, tentou dar. Se não tentou, quis tentar. Se não quis, pensou em querer. Enfim, pode não ter acontecido realmente nada, mas o ex-presidente e a sua turma mais próxima gostariam que acontecesse — pelo que deram a entender conversando entre si pelo WhatsApp, ou mesmo em reuniões “presenciais”.
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A adesão de quase toda a imprensa à teoria do ministro Moraes sobre o que chamam de “golpe do Bolsonaro” se faz em cima de algo que está virando o “novo normal” no Brasil — a lógica que leva a conclusões ilógicas. Funciona assim: “Vamos demonstrar na reportagem abaixo, por A + B, o que está acontecendo. A: estamos no mês de fevereiro. B: o mês de fevereiro vem imediatamente antes do mês de março.
Conclusão: o mês que vem é abril”. É esse, basicamente, o jornalismo que foi apresentado no caso. As matérias se dispunham a provar, fato por fato, que Bolsonaro tentou, quis, pensou etc. no golpe. Daí expõem, fato por fato, o que aconteceu — e cada fato, sem exceção, mostra que a única coisa que o ex-presidente não fez, em suas meditações sobre o assunto no segundo semestre de 2022, foi pedir a ajuda de alguém para um golpe. A obra-prima da investigação é uma reunião secreta do ministério — só que a reunião foi filmada, gravada e fotografada, e nela Bolsonaro só falou de coisas que já tinha falado antes em público. A mais agressiva de todas, e que ocupou a maior parte da reunião, foram as suas conhecidíssimas suspeitas sobre as urnas eletrônicas do TSE.
E o golpe, mesmo, com aqueles atos absolutamente necessários para
se dar um golpe? Nem uma sílaba na reunião toda, ou depois
dela, ou antes.
O que
houve de
realmente concreto
foi essa
coisa das
urnas, que
a polícia,
o ministro
e os
jornalistas apresentam
como prova
de golpe — “desinformação”
com intenções
antidemocráticas, pelo
que dizem.
Se Bolsonaro estava reclamando das urnas é porque iria dizer,
caso perdesse
a eleição,
que houve
fraude na
contagem dos
votos —
e, em
cima disso,
decretar que
ia continuar
na Presidência.
Mas ele
perdeu, não disse
que houve fraude e não continuou na Presidência. Foi
embora quando acabou o seu mandato. Mais que tudo, não há
lei nenhuma que proíba
desconfiar das urnas do TSE — milhões de
brasileiros desconfiam,
e não
vão confiar
nunca. Foi
exatamente para
falar mal
do sistema
eleitoral, aliás,
que o
próprio Bolsonaro
fez a
sua palestra fatal
para os embaixadores na fase final da campanha. Por
causa disso a Justiça declarou que ele não pode mais ser
candidato a eleição
nenhuma — mas não disse que cometeu o crime de “golpe de
Estado”. Mudaram
de ideia?
O resumo
desta opera,
que é
em dez
ou mais
atos, poderia
muito bem
ser o
seguinte: Bolsonaro
é o
único acusado
de golpe
no mundo
que disse com
todas as
palavras, segundo
a própria
peça de
acusação, que
não admitia dar o golpe. Depois de falar em “providências”,
ele disse exatamente o
seguinte: “Não é providência de força, não. Não é dar
tiro, botar
a tropa
na rua,
metralhar aí,
tocar fogo”.
Era o
quê, então?
De novo, segundo as palavras que a polícia revelou, era colocar os
ministros (“o
meu exército”,
segundo disse)
numa ação
conjunta para
apontar os problemas que ele via nas urnas do TSE. “Perder
eleição numa democracia
não tem problema nenhum”, disse Bolsonaro na
reunião que serve de base principal das denúncias. “Agora,
perder a democracia numa
eleição, aí, sim, é que está o problema.” Foi
precisamente o que Lula, o PT e o “centro civilizado”
disseram o tempo
inteiro durante
a campanha:
se Bolsonaro
ganhar a
eleição, ele
vai acabar
com a
democracia no
Brasil. Mas,
para a
mídia quase
toda, essas
palavras provam que o ex-presidente defendeu “um golpe sem
armas” na
reunião. Aí
não tem
jeito.
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Mas quem é que está preocupado, a esta altura, com prova, aplicação
da lei ou simplesmente coisas que façam algum nexo? No Brasil
de Alexandre de Moraes, do
STF e dos comunicadores, a última
preocupação é
provar qualquer
das acusações
que fazem
— pelo
menos dentro daquilo que as leis, os regimes democráticos e o
raciocínio lógico consideram ser uma prova. Para que prova?
A junta de
governo do
Brasil atual
não precisa,
já há
muito tempo,
demonstrar que
houve um crime. Basta escolher o criminoso, e todo o resto se
arranja — a autoridade que funciona ao mesmo tempo como
polícia, promotor e juiz
do caso escreve um relatório dizendo que o ângulo
reto ferve a 90 graus e que, diante disso, o sujeito é
culpado. A mídia garante
ao público que o relatório é uma prova irrefutável contra o
acusado, e não se fala mais do assunto. O que interessa não
é o que aconteceu, e sim
o que eles querem que aconteça. E o que eles
querem, mais do que qualquer outra coisa que já quiseram na
vida, é prender Jair
Bolsonaro. No seu entender, é a única maneira de
resolver um problema até agora sem solução visível: não
dá para ganharem uma
única eleição limpa neste país enquanto ele estiver por
aí.
Nada do que se fez deu certo até agora. O sistema STF-TSE-Moraes- Lula conduziu uma campanha eleitoral que Bolsonaro não poderia ganhar. Tendo perdido, ficaram com medo de que ele disputasse a Presidência de novo em 2026 — e então proibiram que seja candidato a qualquer cargo público pelos próximos oito anos. Tendo sido declarado inelegível, constatou-se que podia continuar influindo na política com seu apoio a candidatos já nas próximas eleições municipais. Reúne milhares de eleitores quando aparece em público, ao contrário de um presidente que não pode dar dez passos na rua para não ser vaiado, e suas lives batem recordes — ainda mais ao contrário de Lula, cujas tentativas de falar com o público pela internet foram tão ruins que tiveram de sair do ar, por falta crônica de audiência. A última ideia, ora em execução, é colocar Bolsonaro na cadeia; ali ele não vai poder usar suas redes sociais, fazer as lives, viajar pelo país, ir a comícios. E a ilegalidade grosseira disso tudo — fora a vergonha mundial de um regime que prende o principal político da oposição, às vésperas de eleições? É quando entram em cena o STF e as provas imaginárias do golpe que não foi dado.
Se vai funcionar ou não é coisa que só vai se saber ao certo quando saírem os resultados das eleições para prefeitos e vereadores. Não existe nada de mais odiado hoje no Brasil do que o Supremo — e essa reputação vai, cada vez mais, contaminando a imagem de Lula. Ele não vai dizer, agora, que não tem nada a ver com o STF ou com Alexandre de Moraes, mesmo porque não pode. Lula não é mais ninguém sem os dois; na verdade, continuaria num xadrez da PF em Curitiba se não fossem um e o outro. De mais a mais, quem vai acreditar numa coisa dessas? O problema, nessa história toda, é o que sempre acontece quando o grupo que tem a força vai concentrando na violação da lei a sua ação política. É preciso, aí, apostar cada vez mais na ilegalidade; não é possível fazer isso com moderação, nem voltar atrás, pois nesse caso o outro lado acaba ganhando. De um inquérito ilegal que foi transformado em instrumento de governo, passa-se para as prisões ilegais. Daí se vai à cassação ilegal de mandatos parlamentares. Segue- se a decisão ilegal de tornar inelegível um cidadão que não foi condenado por crime nenhum. Há a censura ilegal, as tornozeleiras ilegais e a violação ilegal dos direitos dos advogados.
Agora estão no primeiro golpe da história em que havia “minutas” por escrito, sem a assinatura de ninguém, e no qual quem tinha a força armada eram os inimigos do “golpe”, e não os acusados de serem os golpistas. A próxima ideia, para o momento em que acharem que dá, é anular o registro do maior partido da oposição, o PL — e o que tem a maior bancada na Câmara dos Deputados, com 99 cadeiras. E daí para a frente? Problemas da democracia se curam com mais democracia, segundo o entendimento comum. Problemas das ditaduras se curam com mais ditadura; como dizia Roberto Campos, ditaduras de esquerda não são biodegradáveis. É o que o consórcio STF-Lula, pelas decisões concretas que os ministros têm tomado há cinco anos, quer fazer no Brasil. Parece ter se tornado uma questão de sobrevivência para eles — ou anulam de vez o sistema legal para continuar mandando, ou correm o risco de não mandar em mais nada no futuro.
Uma opção é ir tomando as decisões à medida que as coisas aparecem; cada dia é um dia. No dia de hoje, o STF está operando como se o Brasil estivesse numa espécie de estado de sítio, decretado e governado por ele mesmo. Amanhã é amanhã.
Talvez nada ilustre isso tão bem como a prisão do presidente do PL por três dias, com audiência de custódia e tudo, porque a PF encontrou em sua casa uma arma com registro vencido. Isso não existe e nunca existiu na Justiça brasileira, mas aí é que está — na vida como ela é, Alexandre de Moraes provou que está podendo prender quem ele quiser. Daí soltou, para provar que está podendo soltar na hora que quiser. Os assinantes da “Carta em Defesa da Democracia”, os “garantistas” e os que se consideram salvos pelo STF não acharam nada de anormal. O presidente da Câmara, por exemplo, foi desfilar no Carnaval de Maceió; disse que a história toda era um mero “caso de polícia”. A imprensa não lamentou a prisão e não percebeu a soltura. Ou seja: o presidente do maior partido de oposição fica três dias inteiros na cadeia e está tudo bem. As pessoas continuam sendo condenadas a 17 anos de prisão por participarem do quebra-quebra do dia 8 de janeiro — tudo bem, igualmente. Um país de 200 milhões de habitantes é governado por um inquérito policial aberto cinco anos atrás, perpétuo e com teores zero de legalidade. Nada do que se decide ali pode ser contestado por ninguém, nunca. Só são indiciados os adversários do sistema Lula-STF. Não se preveem absolvições. Também aí, nenhum problema.
Falar em “provas”, a esta altura, vira uma brincadeira — como lembrar o que diz o texto da lei, ou mencionar as regras do Estado de Direito. O STF não está interessado em debates jurídicos, na legalidade do que faz, na hermenêutica ou na propedêutica. Está pensando unicamente em manter as coisas como estão, até para a segurança de Alexandre de Moraes e dos demais ministros que se condenaram a aprovar tudo o que ele faz. Deixou de ser um tribunal de Justiça; tornou-se uma combinação de delegacia de polícia com vara penal. Não está claro, até o momento, como o STF pode deixar de ser o que está sendo — nem como vai modificar as relações de dependência mútua que mantém com o mundo de Lula. Tendo pela frente um inimigo que não podem suprimir, mas apenas prender, o Congresso aberto e eleições capazes de dar maioria para a oposição no Senado, daqui a menos de três anos, é certo que estão contratando problema. O habitual, em situações como essa ou parecidas, é os radicais ficarem mais radicais. Vão conseguir o que querem? Aí, como sempre, já são outros 500.
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